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Mostra: "Memórias em trânsito, infâncias e afetos em África"

Curadoria de Lecco França

A convite da Egbé – Mostra de Cinema Negro de Sergipe fiz a curadoria e montei o Programa Especial “Memórias em trânsito, infâncias e afetos em África”. É a primeira vez que o evento promove essa abertura a produções estrangeiras, advindas do continente africano, por isso o desafio e a responsabilidade foram grandes. Revisitando minha trajetória de pesquisa sobre cinematografias africanas e acompanhando as produções mais recentes, organizei uma sessão com filmes de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, que se debruçam sobre memórias coletivas e individuais, ilustradas por relatos da violência colonial, das repressões de gênero, raça e sexualidade, de vivências da infância, da descoberta do amor e da saudade da terra natal e da família. Filmes, em sua grande maioria, que representam novos olhares sobre o presente, passado e futuro, oriundos de uma efervescente e criativa geração de cineastas de diferentes países do continente, muitos em trânsitos pela diáspora. Entretanto, houve, nessa seleção, espaço também para gerações anteriores de cineastas, que abriram muitas portas para a produção audiovisual em África e trilharam importantes caminhos para os cinemas africanos. Ar condicionado (2020, Angola, direção de Fradique), Kmedeus (2020, Cabo Verde, direção de Nuno Miranda), Uma memória em três atos (2017, Moçambique, direção de Inadelso Cossa), Cacheu Cuntum (2020, Guiné-Bissau, direção de Welket Bungué), Kau Berdi (2019, Guiné-Bissau, direção de Welket Bungué), Corre quem pode, dança quem aguenta (2019, Guiné-Bissau, direção de Welket Bungué), Relatos de uma rapariga nada pudica (2017, Cabo Verde Portugal, direção de Lolo Arziki), Fin (2018, Moçambique e Cuba, direção de Lara Sousa) foram as obras selecionadas.

Segundo Fradique, diretor do filme Ar condicionado, “uma cidade é feita de pessoas, de memórias e não de arranha céus de espelhos, vazios, que importamos de telenovelas ou filmes americanos”. É com esse olhar sobre Luanda, capital de Angola, que se constrói a narrativa da trama. Em uma das passagens do filme, a personagem Zezinha diz: “Matacedo, cuidado. Ele anda à toa inventando memórias da solidão que só ele sente”. Essa frase ressalta a importância que as memórias individuais e coletivas ganham no filme. A própria Zezinha vive sonhando com o retorno à ilha de sua infância feliz. Já Kmedeus, do realizador cabo-verdiano Nuno Miranda, traz um retrato inspirado em uma figura conhecida da ilha do Mindelo, que foi o Kmedeus, mas também direciona seu olhar para a própria cidade e suas memórias. Uma memória em três atos, o cineasta moçambicano Inadelso Cossa, por sua vez, propõe-se revisitar fatos da história de seu país. O documentário foi construído a partir de materiais de arquivo dos tempos da opressão colonial portuguesa e de testemunhos de moçambicanos que sobreviveram à luta pela libertação. Também relacionado com memórias da colonização, Cacheu Cuntum ilustra o retorno do cineasta Welket Bungué a Guiné-Bissau, sua terra natal, vinte anos depois de ter saído do país para viver em Portugal. Entre os lugares descobertos ou revisitados, está Cacheu, que historicamente serviu para receber pessoas trazidas de vários lugares da costa ocidental de África, para serem vendidas como escravizados. Lá ele se deparou com figuras estatuárias que antagonizaram as culturas e os povos da África ocidental durante cerca de 400 anos, tais como Honório Pereira Barreto, e visitou o Memorial de Escravatura e de Tráfico Negreiro de Cacheu, onde, pela primeira vez, ouviu falar da história pré-colonial da Guiné-Bissau através do relato de Pascoal Gomes. Em Kau Berdi, título em crioulo, que significa em português “Terra Verde”, Welket Bungué registrou, dessa vez, sua viagem a Cabo Verde. Concebido como um filme ensaio e poema visual, ao investir em ricas imagens das paisagens verdejantes locais, ele também conhece a casa em que viveu Amílcar Cabral, importante líder da luta de libertação colonial da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Finalizando o conjunto de três filmes dirigidos pelo cineasta luso-guineense está Corre quem pode, dança quem aguenta, que apresenta os relatos de infância de um jovem rapaz negro vivendo em uma comunidade periférica com Rio de Janeiro, e que conviveu com o racismo, o tráfico de drogas e a violência policial. A dança foi um dos caminhos que ele encontrou para firmar sua existência. Em Relatos de uma rapariga nada pudica, a cineasta cabo-verdiana Lolo Arziki apresenta um relato íntimo e pessoal sobre lembranças de sua infância marcada pela repressão dos seus desejos e afetos, em um país que condena relações homoafetivas, assim como revela sua indignação com a violência moral e sexual que afetas as mulheres em seu país. Já Fin é um filme híbrido, que mescla documental e ficção, no qual a cineasta moçambicana Lara Sousa reflete sobre sua condição de solidão em Cuba, seu pertencimento a Moçambique e seus afetos com o pai, Camilo de Sousa, um dos nomes mais importantes do cinema moçambicano e da luta de libertação. Para finalizar, O grande bazar, dirigido pelo cineasta brasileiro-moçambicano Licínio Azevedo, uma singela homenagem a gerações passadas do cinema, mas, nesse caso, ainda na ativa.

 

Por mais de cinco anos, me debrucei sobre a história do cinema em Moçambique, me especializando na obra desse cineasta. Nesse média-metragem de ficção, dois garotos oriundos de classes sociais diferentes se conhecem e constroem uma bonita amizade. Em trânsito pela cidade de Maputo, capital do país, eles se deparam com diferentes sujeitos que revelam suas recordações e saudades dos amores, da família e da terra natal. Estou muito feliz em poder contribuir para a construção de mais uma ponte entre o Brasil e o continente africano, através do cinema.

 

Aproveitem bem os filmes!

Lecco França

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